Decisão de Toffoli pode abrir brecha para que empresa solicite anulação do acordo de leniência

Juristas avaliam que manifestação do ministro do STF, além de anulação de provas usadas na Lava-Jato, pode gerar pedido de ressarcimento; Odebrecht pagou R$ 157 milhões em multas

Na decisão em que anulou provas oriundas do acordo de leniência da Odebrecht usadas em casos da Lava-Jato, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli criticou procedimentos e cláusulas adotados pelo Ministério Público Federal (MPF) do Paraná na elaboração do acordo, em 2016. A posição de Toffoli, na avaliação de juristas, abre a possibilidade de que a empresa solicite a anulação do acordo de leniência com um todo, que previu indenização de R$ 2,7 bilhões à União. Deste valor, R$ 157 milhões já foram pagos em multas, segundo a Controladoria-Geral da União (CGU). Especialistas avaliam ainda que manifestação do ministro pode gerar ainda pedido de ressarcimento da empresa.
O acordo de leniência foi formalizado pela Lava-Jato de Curitiba em dezembro de 2016, e homologado em maio de 2017 pelo então juiz titular da 13ª Vara Federal do Paraná, Sergio Moro. Posteriormente, em 2018, a CGU e a Advocacia-Geral da União formalizaram um acordo direto com a Odebrecht, em termos similares aos do MPF do Paraná. Além de prever multas, o acordo de leniência também estipulou penas de prisão a executivos da empresa, que firmaram acordos de delação premiada.
Embora a decisão de Toffoli tenha se restringido a vetar o uso de provas oriundas do acordo de leniência em investigações e processos judiciais, a argumentação do ministro ofereceu um caminho para contestação judicial das bases do próprio acordo.
— A parte (Odebrecht) ou cada um dos executivos podem pedir a nulidade (do acordo de leniência). Anulam-se todos os consectários do acordo, seja em relação à multa ou no tocante à esfera criminal. Também pode haver pedido de restituição (de multas pagas). É outra briga judicial — avaliou o advogado Miguel Pereira Neto, especialista em Direito Criminal e diretor-adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).
Procurado através de sua assessoria de imprensa, o Grupo Novonor, nome adotado pela Odebrecht em 2020, não quis comentar se pretende pedir a revogação do acordo de leniência e o ressarcimento de multas pagas. A equipe de advogados que representa o grupo informou ao GLOBO que está “avaliando juridicamente a decisão” de Toffoli.
Ao todo, o acordo de leniência firmado pelo MPF com a Odebrecht estipulou R$ 3,8 bilhões em multas, sendo parte deste valor destinado ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos e à Procuradoria-Geral da Suíça, que também investigavam a empresa. Em sua decisão, Toffoli argumentou que as tratativas da Lava-Jato de Curitiba “jamais poderiam avançar para a assinatura de Acordo de Leniência com cláusulas” de restituição a entes estrangeiros.
Para a advogada Esther Flesch, mestre em Direito pela Universidade de Michigan e com histórico de atuação em outros acordos de leniência envolvendo empresas no Brasil e nos Estados Unidos, a entrega de provas por parte da Odebrecht é o que sustenta um acordo desse tipo — no qual os colaboradores fornece elementos contra si mesmos, ficando sujeitos ao pagamento de indenizações e outras sanções pactuadas, em troca da obtenção de certos benefícios, como o de não irem a julgamento.
Logo, a anulação das provas poderia, em tese, de acordo com a advogada, fazer com que o próprio acordo seja revisto “para os dois lados, tanto em relação aos benefícios concedidos quanto às multas aplicadas”. O contexto desde caso, por outro lado, sugere que a Odebrecht tem maior margem para uma revisão da leniência.
— A empresa ou o próprio MPF podem revisitar o acordo, se há questionamentos sobre a forma como as provas foram produzidas. No entanto, como a decisão do ministro Toffoli aponta que as provas são “imprestáveis” por conta da quebra da cadeia de custódia e da conduta dos procuradores, fora dos acordos de cooperação internacional, trata-se de uma situação singular, em que o MPF não poderia usar essas provas para buscar a condenação da empresa — avaliou Flesch.
Mensagens da Spoofing
Toffoli citou em sua decisão mensagens de procuradores da Lava-Jato, obtidas no âmbito da Operação Spoofing, para argumentar que as tratativas do acordo de leniência teriam ocorrido à margem de procedimentos formais de cooperação internacional.
Em um dos diálogos, por exemplo, de agosto de 2016, procuradores mencionam uma reunião com o Federal Bureau of Investigation (FBI), órgão do governo americano, com o objetivo de quebrar a criptografia do sistema de contabilidade de propinas da Odebrecht, chamado de My Web Day B, e acessar seu conteúdo. Na conversa, integrantes da força-tarefa afirmam que o “canal com o FBI é com certeza muito mais direto” do que através da Embaixada dos EUA no Brasil, e chegam a sugerir a contratação de um hacker, “a ser pago pela ODE”, sigla que remete à Odebrecht.
Em outra conversa, de outubro de 2016, o então procurador Deltan Dallagnol explica a Moro que esperava uma “remessa de contas da Suíça”, referindo-se possivelmente a dados bancários, que seriam enviados por um procurador do país, identificado como Stefan. Horas depois, Deltan afirma que o governo suíço “barrou transferências e quer que façamos pedidos de cooperação (que podem demorar até um ano para resposta)”, e concluiu: “Tentaremos reverter”.
A decisão de Toffoli afirma que “não foi encontrado registro de pedido de cooperação jurídica internacional para instrução do processo (…) no qual foi homologado o acordo de Leniência da Odebrecht”. Por conta disso, além de declarar a “imprestabilidade” de provas obtidas através dos sistemas da Odebrecht, disponibilizadas no âmbito do acordo de leniência, o ministro do STF pediu a “apuração da conduta dos agentes públicos envolvidos nesta operação”, isto é, os integrantes da Lava-Jato.
Em nota divulgada na quarta-feira, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) rebateu argumentos usados por Toffoli para criticar a atuação dos membros da Lava-Jato de Curitiba. Segundo a ANPR, “não é correta a afirmação” de que o acesso aos sistemas de contabilidade de propina da Odebrecht “descumpriu o procedimento formal de cooperação internacional”, já que a própria empresa entregou cópia do material aos procuradores durante as tratativas do acordo de leniência. A entidade também citou que houve pedido de cooperação internacional do MPF às autoridades da Suíça, em março de 2016, com atuação do DRCI, para “confirmar a integridade dos sistemas” entregues pela Odebrecht. A resposta às autoridades brasileiras veio em setembro de 2017, depois, portanto, da homologação do acordo.
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Publicado em O Globo.

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