Os Acordos para Evitar a Dupla Tributação da Renda (ADT) celebrados entre o Brasil e demais países estabelecem, como regra, a tributação das remessas relativas aos rendimentos auferidos pelo exercício de profissão independente apenas no país do prestador de tais serviços. Trata-se do chamado artigo de “profissões independentes”, que se refere aos rendimentos decorrentes do exercício de profissões liberais em um dos Estados contratantes.
A título exemplificativo, trazemos a redação do artigo 14 do ADT firmado entre o Brasil e a Dinamarca:
“1. Os rendimentos que um residente de um Estado Contratante obtenha pelo exercício de uma profissão liberal ou de outras atividades independentes de caráter análogo só são tributáveis nesse Estado, a não ser que o pagamento desses serviços e atividades caiba a um estabelecimento permanente situado no outro Estado Contratante ou a uma sociedade residente desse outro Estado. Neste caso esses rendimentos são tributáveis no outro Estado.
2. A expressão ‘profissão liberal’ abrange em especial, as atividades independentes, de caráter científico, técnico, literário artístico, educativo e pedagógico, bem como as atividades independentes de médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, dentistas e contadores.”
De partida, nota-se que referido dispositivo se refere aos rendimentos que decorrem do “exercício de uma profissão liberal ou outras atividades independentes“. Embora não exista disposição expressa nos tratados acerca da amplitude de aplicação deste dispositivo, isto é, se aplicável apenas para indivíduos (pessoas físicas) que exercem a profissão, ou se, também, para sociedades, alguns protocolos firmados no âmbito desses ADTs expressamente incluem as sociedades no âmbito de aplicação do artigo 14.
Tomando o mesmo exemplo do ADT firmado entre o Brasil e a Dinamarca, o protocolo firmado no âmbito da convenção estabelece que as disposições do artigo 14 “aplicar-se-ão mesmo se as atividades forem exercidas por uma sociedade“.
Ocorre que, embora alguns ADTs firmados entre o Brasil e outros países contenham protocolo estendendo a aplicação do artigo para as sociedades, outros ADTs não possuem a mesma previsão, podendo gerar dúvidas aos contribuintes no tocante à extensão do dispositivo às remessas realizadas às sociedades pelo pagamento de serviços de profissões independentes.
Destaca-se que, a Receita Federal, ao se manifestar sobre a prevalência dos ADTs celebrados pelo Brasil no tocante ao tratamento tributário destinado às remessas decorrentes da prestação de serviços técnicos por profissionais independentes, embora tenha determinado a aplicação do ADT nas hipóteses em que o próprio ADT autoriza a tributação de tais serviços no Brasil, expressamente consignou que tais serviços estão relacionados à qualificação técnica de “uma pessoa ou de um grupo de pessoas” (artigo 1º, inciso II do ADI 5/14). Confira-se:
“Art. 1º O tratamento tributário a ser dispensado aos rendimentos pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos por fonte situada no Brasil a pessoa física ou jurídica residente no exterior pela prestação de serviços técnicos e de assistência técnica, com ou sem transferência de tecnologia, com base em acordo ou convenção para evitar a dupla tributação da renda celebrado pelo Brasil será aquele previsto no respectivo Acordo ou Convenção:
I – no artigo que trata de royalties, quando o respectivo protocolo contiver previsão de que os serviços técnicos e de assistência técnica recebam igual tratamento, na hipótese em que o Acordo ou a Convenção autorize a tributação no Brasil;
II – no artigo que trata de profissões independentes ou de serviços profissionais ou pessoais independentes, nos casos da prestação de serviços técnicos e de assistência técnica relacionados com a qualificação técnica de uma pessoa ou grupo de pessoas, na hipótese em que o Acordo ou a Convenção autorize a tributação no Brasil, ressalvado o disposto no inciso I; ou
III – no artigo que trata de lucros das empresas, ressalvado o disposto nos incisos I e II.” (g.n)
A contrario sensu, poder-se-ia argumentar, nesse sentido, a favor da aplicação do artigo 14 quando tais serviços são relacionados a qualificação técnica de um grupo de pessoas (sociedades) nos casos em que os ADTs afastam a tributação em um dos Estados contratantes, dado que a própria Receita reconhece sua aplicabilidade para os casos em que os serviços independentes são prestados por tais grupos e não, exclusivamente, por um indivíduo.
Ocorre que, a Receita, por meio da Solução de Consulta nº 598/2017 [1], ocasião em que se discutiu a aplicação do artigo 14 para remessas realizadas a agências de turismo localizadas em três países, quais sejam, Dinamarca, Finlândia e Suécia, entendeu pela prevalência do artigo 14 apenas para as remessas realizadas para a Dinamarca, uma vez que, apenas este país, dentre os três citados, continha protocolo firmado no âmbito do ADT com o Brasil estendendo a aplicação do dispositivo para sociedades.
Por meio da Solução de Consulta nº 135/2019 [2], ainda, a Receita entendeu que os serviços de engenharia prestados por sociedade de engenheiros residente no México deveriam ser enquadrados no artigo 14 do ADT Brasil-México. Entretanto, um fator determinante no caso foi a disposição contida no item 7 do protocolo firmado no referido ADT, que expressamente estabelece que as disposições contidas no artigo 14 alcançam também as sociedades.
No âmbito administrativo, o antigo Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) também já se manifestou contrariamente à aplicação do artigo 14 nos casos em que os ADTs não dispõem de Protocolo estendendo a aplicação do dispositivo às sociedades. Na ocasião (Acórdão nº 04-20.124, sessão de 12/8/2004) os conselheiros, por unanimidade, destacaram que o artigo aplica-se “aos profissionais liberais e outras atividades independentes, restando claro que estas disposições se aplicam exclusivamente a pessoas físicas“, completando que “não houve celebração de Protocolo Adicional da Convenção celebrada entre o Brasil e Portugal, estendendo o conceito para a sociedade mercantil ou civil, sendo inaplicável a analogia com as convenções realizadas com outros países, por ser matéria de interpretação restrita“.
A nosso ver, o artigo de profissões independentes faz, entretanto, referência ao “exercício de uma profissão liberal”, não trazendo qualquer limitação quanto ao seu escopo de aplicação, isto é, se a norma deve apenas se destinar para pessoas físicas, ou se também deve ser aplicada às sociedades, não cabendo interpretação restritiva por parte das autoridades fiscais em qualquer que seja o caso. A fiscalização, nesse sentido, deve estar adstrita ao comando legal já existente, sob pena inclusive de afronta aos princípios da legalidade tributária e da segurança jurídica dos contribuintes.
Como bem ilustra o renomado doutrinador Alberto Xavier (2015, páginas 665 e 675), ao tratar do artigo de profissões independentes, “o fato de os profissionais em causa poderem agrupar-se sobre a forma de pessoas jurídicas em nada afeta a qualificação dos serviços como pessoais e não empresariais, pois nas profissões liberais os serviços são sempre prestados pelas pessoas físicas, a quem cabe exclusivamente a responsabilidade profissional, de tal modo que a pessoa jurídica é apenas um simples instrumento de cobrança de receitas e de apuração e repartição de lucros”.
Complementa, ainda, o autor que “(…) reportar-se-á este preceito apenas a pessoas físicas, ou incluirá os casos em que as profissões em causa sejam exercidas por sociedades? A menção genérica a ‘residentes’, efetuada pelas disposições em causa, sugere que se apliquem tanto a pessoas físicas como jurídicas e, neste caso, seja qual for a forma por elas adotada“.
Ademais, o artigo 4 dos ADTs assinados pelo Brasil, como regra, expressamente designam como “residente de um Estado Contratante“, “qualquer pessoa que, em virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto em razão de seu domicílio (…)”. O artigo 3, por sua vez, define “pessoa” como “uma pessoa física, uma sociedade ou qualquer outro grupo de pessoas“.
Vale notar, ainda, que a Convenção Modelo da OCDE suprimiu o artigo 14, tomando como justificativa para a decisão o fato de “não existirem diferenças pretendidas entre os conceitos de estabelecimento permanente, tal como utilizado no artigo 7, e de instalação fixa, tal como utilizado no artigo 14, ou entre a forma como os lucros eram apurados e o imposto era calculado de acordo com os artigos 7 e 14. Além disso, nem sempre era claro quais eram as atividades abrangidas pelo artigo 14 em comparação ao artigo 7. O efeito da supressão do artigo 14 é que os rendimentos provenientes de serviços profissionais ou outras atividades de carácter independente passam a ser tratados ao abrigo do artigo 7 como lucro das empresas“.
Embora os novos tratados assinados pelo Brasil com outras jurisdições, a exemplo de Suíça, Emirados Árabes Unidos e Singapura ainda conterem, em suas disposições, o artigo relativo a profissões independentes (artigo 15 desses tratados), agora nomeado como “Serviços pessoais independentes”, a nova redação manteve aquela já existente nos tratados mais antigos (sem especificações maiores acerca do destinatário das remessas), também não contendo protocolo contendo uma possível extensão dos efeitos às sociedades, trazendo, entretanto, maiores especificações com relação ao conceito de estabelecimento permanente e instalação fixa [3].
De qualquer forma, na medida em que suprime o artigo 14 de sua redação, o Modelo Convenção suscita outra discussão, que é a da aplicação subsidiária do artigo 7 dos tratados em tais remessas, na medida em que o Superior Tribunal de Justiça já confirmou o entendimento de que o termo “lucro da empresa” do artigo 7º não se limita ao “lucro real” previsto na legislação brasileira (considerando adições e exclusões ao lucro líquido do exercício), mas sim corresponde ao “lucro operacional” de uma empresa, compreendendo os rendimentos resultantes de todas as suas atividades, dentre elas, aquela relativa à prestação de serviços (vide Recurso Especial nº 1.161.467, 2ª Turma, DJ 1/6/2012, entendimento este confirmado pelo Recurso Especial nº 1.618.897, 1ª Turma, DJ 26/5/2020).
Como conclusão, entendemos que eventual interpretação restritiva da Receita à aplicação do artigo 14 dos ADTs deve ser vista de forma temerária, na medida em que afronta as próprias disposições contidas nos ADTs firmados pelo Brasil e, por consequência, os princípios aqui citados, de suma importância para o Direito Tributário. De forma subsidiária, entendemos ainda que se aplicam, sobre tais remessas, as disposições do artigo 7 dos tratados, que dispõe sobre lucro das empresas localizadas nos países signatários.
Publicado por ConJur