O texto final da Medida Provisória (MP) que abre caminho para a privatização da Eletrobras beneficia uma série de segmentos não necessariamente relacionados ao processo de venda de ações da estatal para diluir a participação do governo, objeto da proposta enviada ao Congresso pelo Executivo.
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Os benefícios foram incluídos por meio dos chamados “jabutis”, emendas que não têm relação com o texto original, em um processo criticado por especialistas por resultar em uma “minirreforma do setor elétrico” e atropelar o debate de modernização do setor, também já no Congresso.
Para a União pela Energia, que reúne entidades do setor, as medidas terão um custo de R$ 84 bilhões. Embora não tenha sido autor dos “jabutis”, o governo afirma que as medidas fazem sentido e reduzirão o preço da energia.
Veja quais setores foram beneficiados:
Distribuição de gás natural
Na votação de quinta-feira, o Senado ampliou benefício aprovado pela Câmara, elevando de 6.000 para 8.000 megawatts (MW) o volume obrigatório de contratação de energia gerada por térmicas com localização definida.
O novo texto beneficiou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ao estabelecer que uma das usinas deve ser instalada no Triângulo Mineiro. A proposta da Câmara já era vista como uma vitória do empresário Carlos Suarez, que controla distribuidoras de gás em regiões beneficiadas.
Não contemplado na proposta original, o Rio também ganhou uma térmica. Assim, os empreendimentos devem ficar em Porto Velho, Macapá ou Boa Vista, Brasília, Triângulo Mineiro, Rio e em algum Estado do Nordeste.
A Associação Brasileira das Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás) alega que essas térmicas teriam de ser contratadas de qualquer jeito e que a definição de locais distantes da malha de dutos ajuda a viabilizar a construção de novos gasodutos no país.
Comercializadores de energia
Outro segmento beneficiado pelo Senado é o de comercialização de energia, que pode ganhar novos clientes com a perspectiva de portabilidade da conta de luz para todos os clientes até 2026, também objeto de uma emenda.
“O poder de escolha compõe um dos três princípios básicos na relação de consumo, sendo os demais a qualidade e o preço”, defendeu, em nota, o presidente da Associação Brasileira dos Consumidores de Energia Elétrica (Abraceel), Reginaldo Medeiros.
O tema já vinha sendo discutido no projeto de modernização do setor elétrico, mas, para as distribuidoras de energia, a abertura como proposta na MP pode trazer prejuízos a pequenos consumidores e ao planejamento do setor.
Os primeiros porque teriam que assumir parte dos custos hoje compartilhados com aqueles que migrarão para o mercado livre.
Uma migração em massa no modelo atual dificulta o planejamento, já que o mercado livre tende a comprar energia de fontes renováveis, mais baratas, e o sistema precisa também de térmicas e hidrelétricas para funcionar.
Em nota enviada à reportagem, o Ministério de Minas e Energia (MME) disse que “o processo de abertura do mercado deverá ocorrer com a celeridade prevista na MP” e tem o intuito de beneficiar os consumidores de pequeno porte, “que poderão, em poucos anos, contratar energia de qualquer fornecedor”.
Pequenas hidrelétricas e energias renováveis subsidiadas
O Senado ratificou benefícios que já haviam sido concedidos pela Câmara a pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), com a obrigação de compra de 2.000 MW em novas usinas, e a empreendimentos contratados por programa que subsidia os primeiros projetos solares e eólicos do país.
Para os opositores, as medidas criam reserva de mercado ao limitar a competição em leilões de expansão da geração de energia e perpetuam o pagamento de contratos assinados quando usinas solares e eólicas não eram competitivas.
O Programa de Incentivo a Fontes Alternativas (Proinfa) custou R$ 3,6 bilhões em 2020 pagando a 131 empreendimentos solares, eólicos e PCHs tarifas entre R$ 310 e R$ 670 por MWh (megawatt-hora) — em leilão de 2019, a energia eólica chegou a ser negociada abaixo de R$ 100 por MWh.
Para o MME, “a prorrogação ocorrerá somente com a aceitação, pelos geradores, de preços entre R$ 100,00 e R$ 230,00 por MWh”. Para o mercado, porém, não faz sentido prorrogar contratos de projetos já amortizados.
A União pela Energia calcula que a prorrogação dos contratos custará R$ 3 bilhões, e a contratação obrigatória de PCHs, outros R$ 2,6 bilhões.
Interesse político regional
Para acomodar interesses políticos, uma série de benefícios regionais foram incluídos pelo Senado, como a destinação de R$ 700 milhões para indenizar o Piauí por perdas na privatização da distribuidora estadual de energia.
Definiu ainda limites de vazão em hidrelétricas para atendimento ao turismo e à navegação, beneficiando, também aqui, área de interesse político do presidente do Senado, o reservatório de Furnas.
A medida é vista como interferência na gestão dos reservatórios pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em um momento em que o setor tenta reverter restrições de vazão para enfrentar a ameaça de racionamento.
A MP tenta acelerar também a construção de linha de transmissão que liga Manaus a Boa Vista, acatando emenda do líder do Republicanos no Senado, Mecias Jesus (RR).
O projeto está parado por causa de impasse com comunidades indígenas, e o texto permite o início das obras mesmo antes da consulta às comunidades afetadas.
“Tem um problema de governança porque atropela a ANA [Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico], o Ibama, a Funai, a EPE [Empresa de Pesquisa Energética], foi todo o mundo atropelado”, afirma a economista Elena Landau.
A rápida tramitação, sem grandes debates, de uma série de medidas que alteram a estrutura do setor elétrico, é avaliada como um fator adicional de risco a investimentos de longo prazo no país.
“Nunca sobrou tanto dinheiro no mundo, e a gente nunca esteve tão barato. Por que o dinheiro não vem para o Brasil? Insegurança jurídica. As regras mudam, sem que a gente saiba nem por quê”, diz Patricia Agra, sócia do LO Baptista Advogados.
Embora a oposição ameace apelar à inconstitucionalidade do texto, o advogado Fábio Izidoro, sócio da área de infraestrutura do MNA, diz não ver muitas chances de vitória no Supremo Tribunal Federal (STF).
Após aprovação no Senado, a medida provisória será revista pela Câmara dos Deputados, mas o relator da matéria na Casa, o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), já disse nesta sexta-feira estar de acordo com o texto. A votação deve ocorrer na segunda-feira..