A atualização do marco legal do saneamento entrou na agenda de prioridades do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que pode colocar o Projeto de Lei 3261/2019 em votação no plenário nesta semana. A legislação é considerada por especialistas a mais relevante para a população pobre do Brasil, que não tem acesso a água e tampouco a tratamento de esgoto. Se aprovado, o PL vai destravar a participação de empresas privadas no setor com o objetivo de ampliar os investimentos no país, que destina a metade do que deveria para universalizar o serviço até 2030. Enquanto as perdas de água aumentam, os ganhos com a elevação de tarifas vão parar nos altos salários dos funcionários públicos das companhias estatais, revela estudo da InterB consultoria.
Hoje, as estimativas dão conta de que 83,3% da população vive em domicílios ligados à rede de abastecimento. Porém, apesar de existir a ligação, nem sempre a água está na torneira. Ao mesmo tempo, mais de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada. Quanto ao tratamento de esgoto, 51,9% da população vive em domicílios conectados à rede de coleta, ou seja, 48% dos brasileiros, ou mais de 100 milhões de pessoas, não são atendidas pelo tratamento sanitário. Além disso, 55% do volume de esgoto coletado não é tratado, com efeitos perversos na saúde dos mais pobres, sobretudo as crianças.
Apesar do quadro lamentável do setor, nos últimos anos, o Brasil investiu, em média, 0,20% do Produto Interno Bruto (PIB) em saneamento, quando é necessário ao menos 0,4%. Em 2018, foram aportados R$ 10,7 bilhões no setor. Estudo da consultoria KPMG aponta, contudo, que se o país quiser universalizar o serviço até 2030, seriam necessários investimentos de R$ 25 bilhões por ano. Como a situação fiscal da maioria dos estados e de muitos municípios não permite a ampliação do investimento público, os especialistas consideram que a situação de atraso em que o setor se encontra só pode ser revertida com recursos privados.
Lobby
O que ainda impede a modernização do marco regulatório, segundo os analistas, é o lobby das empresas estatais, que temem perder mercado quando o setor promover a concorrência com a iniciativa privada. Hoje, os municípios que não têm serviços próprios de saneamento fazem contratos, sem licitação, com as companhias públicas estaduais.
Parecer aprovado em comissão especial no fim de outubro, de relatoria do deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), não autoriza a assinatura de novos contratos sem concorrência após a sanção do novo marco legal. Porém o relator fez uma concessão às estatais, e o texto deve estipular um prazo de transição para possibilitar a renovação de contratos em vigor, alternativa incluída um dia antes da aprovação na comissão, para que a tramitação do PL pudesse avançar.
Na opinião de Cláudio Frischtak, presidente da InterB Consultoria, o relatório do deputado Geninho deveria ser aprovado na íntegra. “Para beneficiar e reduzir a desigualdade, com impacto na saúde, precisamos modernizar a lei. O relatório é excelente, porque vai beneficiar os mais pobres, que não têm o serviço”, explica. Frischtak ressalta que a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), contrária ao relatório, quer apenas manter os privilégios, ferindo o interesse público. “Os aumentos de tarifas promovidos pelas companhias foram para aumento de salários e não para investimentos”, alerta. Levantamento da InterB, com dados reportados pelas próprias empresas, aponta claramente isso (veja no quadro ao lado). “É um escândalo. São corporações privilegiadas à custa da população mais pobre. Querem assegurar salários 2,3 vezes maiores do que os praticados no setor privado, com baixos investimentos e aumento nas perdas de água. Isso compromete a saúde das pessoas”, declara.
Frischtak ressalta que não são todas as estatais, mas a maioria tem “gestão sofrível”. “São muito mal reguladas, porque a regulação é estadual e a empresa, também. Além disso, os contratos com os municípios são frágeis do ponto de vista jurídico. O que querem é manter a situação de monopólio”, crítica. O especialista lembra que o Brasil é um dos países de renda média mais atrasados em saneamento. “Consegue ser pior do que nações mais pobres, como o Equador. A situação está assim porque há 40 anos nada muda no Brasil. Agora é a hora de tirar o atraso.”
Alberto Sogayar, sócio da área de infraestrutura do L.O. Baptista Advogados, observa que o que está sendo negociado é o prazo de transição, se será de 12, 24 ou 36 meses. “Os deputados estão trabalhando para chegar ao consenso. Agora, uma vez aprovado o marco, não vejo porque manter estatais lentas e sem recursos. Na prática, pode ocorrer a extinção delas”, pondera. Sogayar é favorável à aprovação do novo marco. “O momento é favorável e estou confiante em um desfecho positivo”, aposta.
O advogado Miguel Neto, sócio do Miguel Neto Advogados, considera o projeto importante, porque estados e entes públicos não têm dinheiro para investir em saneamento. “Essa trava, de preferência para as estatais com os municípios, impede a entrada de grupos privados. É um tipo de investimento que precisa ser aberto para a iniciativa privada, porque o consumo de caixa é muito grande no começo e a recuperação em muitos anos”, explica.
Contrário à maioria dos especialistas, Maurício Zockun, sócio da área de Direito Administrativo do Zockun & Fleury Advogados, alerta para o perigo de o PL deixar mercados pouco rentáveis sem serviço de saneamento. “As privadas querem acessar o mercado que é cativo das estatais. O problema é que quer apenas os mercados maduros. Existem 30% de municípios onde a operação não é rentável”, assinala. Segundo ele, o projeto não deixa claro como serão formalizados os blocos para venda casada, o chamado filé com osso. “Nos aeroportos funcionou, porque são todos federais, de um ente público apenas. No caso do saneamento, é tudo municipal”, diz.
Zockun acredita que, se o marco minar o mecanismo do contrato de programa entre municípios e estatais, as mais prejudicadas serão as cidades onde os mercados não são atrativos para a iniciativa privada. “O PL estava melhor quando veio do Senado, porque previa a formação de consórcios. Na Câmara, um substitutivo desarrumou o texto”, argumenta.
Concessionárias
O diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto, destaca que o relatório do deputado Geninho poderia passar na íntegra. “Tem coragem de propor abertura de mercado. Nada é ideal, e a gente sabe do lobby das companhias estatais e de alguns governadores, sobretudo do Nordeste, que vêm liderando um movimento contrário”, aponta. De fato, deputados, principalmente da bancada do Nordeste, fizeram pressão para que o texto do novo marco legal do saneamento básico dê uma sobrevida aos contratos fechados sem licitação.
“A questão é mais política. No entanto, os contratos de programa são instrumentos frágeis e mantêm o mercado fechado na mão das companhias públicas, que têm problema de gestão e de capacidade de investimento”, sustenta. De acordo com Soares Neto, as empresas privadas estão presentes em 6% dos municípios brasileiros e investem 20% do total. “Para levar água e esgoto para todo o Brasil, são necessários R$ 700 bilhões. Existe apetite internacional e recurso não será o problema. Quanto disso vai entrar no país após aprovação do marco legal, vai depender do ritmo em que os estados e municípios colocarem os editais na rua.” Procurada, a Aesbe não respondeu.