É de conhecimento geral que, em setembro de 2023, o Fisco brasileiro editou a Instrução Normativa RFB nº 2.161, que regulamenta as novas regras de preços de transferência objeto da Lei nº 14.569/2023, que introduziu o the arm’s length principle [1] e as regras das Guidelines da OCDE como modelo para o controle de preços de transferência em operações internacionais de qualquer natureza, praticadas entre partes vinculadas.
Embora a adoção das novas regras de preços de transferência já seja obrigatória para os contribuintes no Brasil desde o início do ano de 2024, a nova regulamentação ainda promete muitos desafios para as empresas que, até o presente momento, não sabem o que esperar do Fisco, especialmente em relação à análise dos documentos e informações necessárias que devem ser apresentados para evidenciar que as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL relativas às transações do contribuinte, sujeitas ao controle de preços de transferência, estão em conformidade com o princípio arm’s length.
Lei nº 9.430/96 e debates no Carf
Com as regras da antiga legislação, previstas na Lei nº 9.430/96, o tema de transfer pricing gerava pouca discussão no contencioso administrativo e judicial [2], pois a lei havia pré-determinado as margens de lucro que a pessoa jurídica poderia ter nas transações, restringindo, assim, quais seriam as provas que o contribuinte poderia produzir para evidenciar a inaplicabilidade das margens de lucro pré-estabelecidas.
Consoante precisamente aponta Paulo Ayres Barreto, não parecia possível, inclusive, o Fisco ser flexível em alterar as margens pré-fixadas pela legislação, tendo em vista o caráter vinculado do ato administrativo exarado pela autoridade fiscal [3].
Contudo, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a controvérsia a respeito da produção de provas das regras da antiga legislação de preços de transferência já gerou muito debate (e promete gerar mais ainda com a nova legislação), inclusive, alguns acórdãos são emblemáticos e merecem breve destaque.
No primeiro acórdão [4] que merece a nossa lembrança, o Carf analisou a defesa apresentada pela Kodak que havia sustentado que a legislação brasileira de preços de transferência inverteu indevidamente o ônus da prova, fazendo com que o contribuinte tivesse a responsabilidade original de demonstrar que os preços nas operações praticadas com pessoas vinculadas são adequados.
Naquela ocasião, o Carf entendeu, de forma favorável ao contribuinte, que os auditores fiscais encarregados da verificação da escolha deveriam utilizar o método mais favorável à empresa ou, ao menos, demonstrar a impossibilidade de aplicação de outros métodos passíveis de utilização nas operações praticadas.
Por outro lado, no segundo acórdão [5] que destacamos, o contribuinte havia utilizado o Método do Custo de Produção mais Lucro (CPL), mas quando foi intimado pelo Fisco para comprovar os custos de produção no país onde foi originalmente produzido, alegou a impossibilidade de fazê-lo, o que motivou a RFB apurar o preço de transferência com os meios de que dispunha.
O Carf, naquela oportunidade, julgou desfavoravelmente ao contribuinte, por concluir que o método escolhido pela empresa era inacessível ao Fisco, eis que não tinha como conseguir informações sobre os custos de produção no país de origem do bem importado, bem como ressaltou, ainda, que a lei (antiga) não priorizava qual seria o método a ser adotado pelo Fisco na apuração de ofício do preço transferência e muito menos o obriga a determinar qual o método seria mais favorável ao contribuinte.
O terceiro e último acórdão [6] que destacamos foi proferido pela Câmara Superior do Carf, que estabeleceu que seria correta a utilização, pela fiscalização, de qualquer dos métodos de ajuste somente quando a empresa não utilizar qualquer método de ajuste previsto na legislação de preços de transferência e que caberia a fiscalização tão somente conferir a veracidade dos dados.
Novo cenário
Assim, conforme se observa acima, a discussão no Carf residia bastante em definir o método a ser aplicado pelo contribuinte e quem tinha o ônus da prova em eventual autuação fiscal. Agora, o cenário é outro bem distante do antigo, pois a nova metodologia permitirá, por exemplo, que a Receita autue uma empresa por não concordar com o preço por ela praticado, abrindo espaço para novas controvérsias.
Antes mesmo de nos debruçarmos sobre a produção de provas na nova legislação, que é o nosso objetivo central, destacamos que neste breve estudo, não será possível aprofundar quais são as características de cada tipo de documentação necessária que cada empresa precisa apresentar para regulamentar as novas regras de preços de transferência.
Por ora, esclarecemos que a legislação já estabelece que as documentações que cada empresa precisa apresentar ao Fisco se dividem em três níveis.
O primeiro documento que o contribuinte deve se atentar no novo modelo é o “arquivo global”, que nada mais é do que a visão geral do grupo multinacional e que oferecerá uma perspectiva abrangente do conglomerado multinacional. Este arquivo contém detalhes sobre a organização e suas operações, incluindo as principais linhas de negócios, estratégias, ativos intangíveis, transações financeiras e políticas, juntamente com acordos de preços de transferência.
Por sua vez, o “arquivo local” que deverá ser apresentado pelas empresas é uma visão específica de cada entidade integrante do grupo multinacional e descreve a estrutura organizacional e as atividades específicas realizadas pelo contribuinte, incluindo detalhes sobre as principais transações controladas. Além disso, aborda os métodos de precificação de transferência e as análises de funcionalidade e comparabilidade, juntamente com a política associada aos preços de transferência.
O último documento é o “CbCR” que é a demonstração da alocação de lucros, tributos e atividades do grupo multinacional. Este documento expõe os dados financeiros, os ativos e o número de funcionários de todas as entidades do grupo, além de discriminar receitas/lucros por entidade e receitas por atividade/entidade, entre outros aspectos. Essa documentação é exigida da empresa controladora do grupo quando sua receita excede 75 milhões de euros.
Termos abertos
Pois bem. Conforme artigo 34 da Lei 14.569/2023, tal documentação deverá ser apresentada para demonstrar que a base de cálculo do IRPJ e da CSLL das pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizem transações controladas com partes relacionadas no exterior estão de acordo com o princípio do arm’s lenght, positivado no artigo 2º da referida lei.
Caso o sujeito passivo deixe de “fornecer as informações necessárias ao delineamento preciso da transação controlada ou à realização da análise de comparabilidade”, o parágrafo primeiro do art.igo 34 prevê duas medidas a serem tomadas pela autoridade fiscal: (1) os ativos e os riscos atribuídos a outra parte da transação controlada, “que não possuam evidências confiáveis de terem sido efetivamente por ela desempenhadas, utilizados ou assumidos”, serão alocados à entidade brasileira; e (2) a autoridade fiscal deverá adotar “estimativas e premissas razoáveis para realizar o delineamento da transação e a análise de comparabilidade”.
Da leitura dos dispositivos, chama atenção o uso de termos abertos: quais evidências serão consideradas “confiáveis” pela autoridade fiscal? Quem define quais premissas são “razoáveis” para realização do delineamento da transação? Quais seriam as informações “necessárias” a serem fornecidas? Ou melhor, quanta informação é o suficiente para atender ao que é considerado “necessário” pela fiscalização?
Tais questionamentos se mostram ainda mais relevantes quando se continua a leitura da referida lei, eis que seu artigo 35 determina que a inobservância do artigo 34 acarretará, dentre outras hipóteses, multa equivalente a 5% sobre o valor da transação correspondente ou a 0,2% sobre o valor da receita consolidada do grupo multinacional do ano anterior, no caso de apresentação com informações inexatas, incompletas ou omitidas, de (1) informações referentes à estrutura e às atividades do grupo multinacional a que pertence o contribuinte e as demais entidades integrantes; e/ou (2) à alocação global das receitas e dos ativos e ao imposto sobre a renda pago pelo grupo a que pertence o contribuinte, juntamente com os indicadores relacionados à sua atividade econômica global.
Ou seja, caso haja omissão ou inexatidão nas informações requeridas, a autoridade fiscal poderá realocar ativos, adotar estimativas e recolher multa de até 5% do valor da transação. Para evitar tal destino, o contribuinte deve se assegurar de que todas as evidências que demonstram seus ativos e riscos são “confiáveis” e que pôs à disposição da fiscalização todas as “informações necessárias”.
A definição do escopo dos conceitos empregados na nova lei é de extrema relevância. Se a conduta que leva à aplicação de tais medidas é “deixar de fornecer informações necessárias” e uma das medidas é a realocação de ativos que não possuam “evidências confiáveis” para embasar sua alocação, então se depreende que, para que o contribuinte forneça todas as informações necessárias, todas essas informações devem ser confiáveis. Por isso o questionamento: o que configura uma evidência/informação confiável?
E mais: deverá a autoridade fiscal justificar o que a fez considerar uma informação prestada como “não confiável”? Ou bastará que alegue não ser tal informação confiável para que possa forçar o contribuinte a incorrer em (mais) gastos de compliance para provar a confiabilidade da informação prestada? Em outras palavras: de quem é o ônus da prova? Da fiscalização, de comprovar que uma informação não é confiável, ou do contribuinte, de comprovar que é?
Jurisprudência
Embora ainda não tenhamos casos envolvendo transfer pricing para analisar sob a ótica da nova legislação, é possível traçar um panorama da jurisprudência no que tange o ônus da prova em matéria tributária.
No emblemático do Tema 1.113, dos recursos especiais repetitivos, que tratava da base de cálculo adotada pelo contribuinte para fins de recolhimento do ITBI, a 1º Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que “o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN)”. Isto é: foi decidido que é da fiscalização o ônus da prova de comprovar que a informação declarada pelo contribuinte não é confiável.
Em que pese o precedente tratar de ITBI, o racional pela presunção de veracidade da declaração do contribuinte encontra respaldo no artigo 148 do CTN, prestigiando o princípio da verdade material, que afasta o emprego de presunções. Assim, perfeitamente aplicável a casos envolvendo preços de transferência: não seria aceitável que a autoridade fiscal simplesmente procedesse à realocação de ativos e adoção de estimativas sem sequer comprovar devidamente que as evidências fornecidas pelo contribuinte são imprestáveis.
E mesmo que se chegue à conclusão de que houve omissão ou inexatidão no fornecimento das informações necessárias, ainda assim a adoção de estimativas de forma unilateral pela autoridade fiscal deve ser o último recurso a ser adotado, justamente pelo prestígio à verdade material. É dizer: deve ser oportunizado ao contribuinte que preste esclarecimentos e informações pertinentes, isto é, que ao menos possa explicar de quais pressupostos partiu. Afinal, é pacífico na jurisprudência que “o arbitramento não tem caráter punitivo, e só deve ser usado quando esgotados os meios para resolução quanto ao débito fiscal” [7].
Percebe-se, portanto, um cenário jurisprudencial que busca proteger a verdade material e, consequentemente, o contribuinte. Não obstante, haja vista a falta de precedentes específicos e a completa alteração da legislação sobre preços de transferência, o que se tem à vista é a alta probabilidade de questionamento das operações pelas autoridades e, assim, a necessidade de os contribuintes respaldarem suas operações com cautela e detalhismo.
[1] O conceito do princípio para o direito tributário internacional, com base no International Tax Glossary do IBFD (International Bureau of Fiscal Documentation), é de que se trata de um conceito do preço cobrado em um mercado aberto, de livre competitividade, ou seja, preço praticado a um braço de distância.
[2] As discussões atuais tratam sobre a (i) ilegalidade da IN nº 243/02 (PRL60: majoração de tributação extrapolando limites legais); (ii) PRL20 x PRL60 (controvérsias sobre o conceito de produção local x mero reacondicionamento); (iii) PRL em revendas a partes ligadas; e (iv) Exclusão de benefícios de ICMS/PIS e Cofins na apuração do PRL.
[3] BARRETO, Paulo Ayres, Imposto sobre a renda e preços de transferência. São Paulo: Dialética, 2001, p. 110.
[4] Sétima Câmara, Acórdão nº 107-09411. Relator: Conselheiro Luiz Martins Valero. Data da sessão: 25/06/2008
[5] 1º Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Acórdão 101-94888, Recorrente: Astrazeneca do Brasil Ltda., Recurso 137928 – 17/03/2005, Relator: Sandra Maria Faroni
[6] Câmara Superior de Recursos Fiscais, Primeira Turma, Processo n.º 16327.002604/2003-07, Recurso n.º 101-140912, Relator: José Clóvis Alves, data da sessão: 07/12/2007.
[7] RESP 200600659900, JOSÉ DELGADO, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJ DATA:16/10/2006 PG:00314.
Publicado em ConJur.