A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 108/2019, apresentada no começo de julho pelo ministro da Economia Paulo Guedes, deu ensejo a grande controvérsia na sociedade, notadamente no meio jurídico.
A raiz da apreensão foi o controvertido conteúdo da proposta, que visa colocar fim à discussão a respeito da natureza jurídica dos Conselhos Profissionais. O objetivo do governo é deixar de enquadrá-los como autarquias, mediante a redefinição de seus status no texto constitucional, hoje objeto de discussão. De acordo com a proposta enviada pelo Ministério da Economia ao Congresso Nacional, os Conselhos Profissionais “são entidades privadas sem fins lucrativos que atuam em colaboração com o poder público, aos quais se aplicam as regras do direito privado e a legislação trabalhista”.
Uma das alterações trazidas pela PEC 108 é o fim da obrigatoriedade de inscrição nos Conselhos para o exercício de certas profissões, sob o fundamento de que as referidas entidades não devem integrar a estrutura da Administração Pública. Logo, o exercício profissional não deveria estar condicionado à prévia filiação.
Os Conselhos Profissionais foram concebidos com a finalidade de fiscalizar o exercício das atividades dos profissionais liberais, de forma a adequá-la às necessidades da sociedade. Tal fiscalização constitui exercício do poder de polícia e, portanto, atividade típica do Estado, razão pela qual a esses Conselhos foi atribuída natureza jurídica de autarquia (entidade pertencente à estrutura da Administração Pública Indireta).
No que concerne à OAB, a questão da natureza jurídica foi objeto de ADIN em 2006, em que o STF atribuiu a ela natureza jurídica diferenciada – de autarquia sui generis – em virtude do reconhecimento de sua autonomia e finalidade institucional, além de seu reconhecido papel social (ADIN 3.026).
Ocorre que, ao enquadrar os Conselhos Profissionais como entidades privadas e, portanto, não integrantes da Administração Pública, a PEC 108 acaba por lhes retirar o poder de polícia, ou seja, o poder de fiscalização de seus profissionais e sua legitimidade para a arrecadação da respectiva contribuição de seus associados.
Como é fácil constatar, as ausências de poder fiscalizatório e de capacidade arrecadatória por parte dos Conselhos os impediria de organizar, fiscalizar e garantir o bom desempenho do exercício profissional, o que hoje só é possível diante de sua autonomia financeira e institucional.
Além disso, a desvinculação da inscrição aos respectivos Conselhos para o exercício profissional, tal como pretendida pela PEC 108, representaria, no que tange à OAB, o fim do Exame da Ordem. A esse respeito, é quase que intuitiva a nefasta consequência que isso traria para a advocacia e, principalmente, para a sociedade como um todo, diante da multiplicação do número de cursos de graduação em Direito no país.
Como é sabido, a OAB presta relevantíssimo papel na defesa dos interesses da sociedade, ao zelar pelo bom exercício da advocacia, seja pela seleção dos advogados que prestarão serviços à sociedade por meio do Exame da Ordem, seja por coibir a prática da má advocacia, mediante a apuração de faltas no exercício profissional e a instauração de processos disciplinares.
Mas a relevância da atuação da OAB vai além. A Constituição da República confere-lhe legitimidade para propositura de ADIN, importantíssimo mecanismo de defesa do ordenamento constitucional contra ameaças de normas transgressoras à Carta Magna (no inciso VII de seu artigo 103).
Por tudo isso, em que pese um dos fundamentos da PEC 108 ser a tutela da liberdade no exercício profissional, valor constitucional que se objetiva alcançar por meio da restrição da atuação do poder público “à disciplina de hipóteses em que haja interesse da coletividade”, é forçoso concluir que ela estaria propiciando justamente o inverso.
Ora, a fiscalização das atividades profissionais, seja pela sociedade, seja pelos seus respectivos Conselhos, não é meio de limitação da liberdade profissional, mas sim justamente o que permite e impulsiona o exercício profissional responsável e de qualidade.
Por essas razões, questionou-se a constitucionalidade da PEC 108, que pareceu simplesmente ignorar a importância dos Conselhos de Classe para a sociedade e, no que toca à OAB, a sua clara vocação de proteger o sistema federativo e o Estado Democrático de Direito.
Em nota de repúdio apresentada em meados de julho, o Conselho Federal e o Colégio de Presidentes de Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil afirmaram que a proposta, apresentada sem qualquer debate com os Conselhos, visa, em resumo, “silenciar a advocacia e desproteger o cidadão”.
Felizmente, a assessoria do ministro Paulo Guedes entrou em contato com a Presidência da OAB, para esclarecer que a PEC 108 não a atingirá. Andou bem nesse sentido a decisão do Ministério da Economia. Agora, resta aos Conselhos das demais atividades profissionais cuidarem para manter a sua independência e autonomia como única forma de garantir a qualidade na prestação de serviços. Caso contrário, ao fim e ao cabo, a sociedade sairá inevitavelmente prejudicada.
O projeto, que atualmente se encontra em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, poderá ter como alternativa novo texto com redação elaborada pelo Conselho Federal da OAB, em conjunto com outros Conselhos Profissionais.
Artigo de: Ronaldo M. Assumpção Filho, sócio do escritório Miguel Neto Advogados.