Quem atua com direito tributário no dia a dia já demonstrava exaustão diante do modelo vigente — demasiadamente burocrático, fragmentado e complexo, a ponto de ter sido denominado “Carnaval Tributário”[1] por Alfredo Augusto Becker. Em resposta a esse cenário, o Congresso promulgou, em 20 de dezembro de 2023, a Emenda Constitucional nº 132/2023, que promoveu uma ampla reformulação do sistema fiscal brasileiro, em vigor há mais de cinco décadas. Paralelamente, foi sancionada a Lei nº 14.596/2023, que instituiu uma nova política de transfer pricing no país, alinhando-a às diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Apesar da relevância dessas transformações, ainda se debate pouco no país sobre a urgência de uma transição para uma economia de baixo carbono — uma demanda cada vez mais presente na agenda internacional, impulsionada por compromissos climáticos e pela adoção crescente de mecanismos de precificação de carbono.
Diante disso, este artigo tem por objetivo realizar uma análise de direito comparado sobre o tratamento tributário conferido aos créditos de carbono no Brasil e em outras jurisdições, destacando os principais desafios para sua efetiva implementação no contexto da reforma tributária brasileira.
Introdução: carbono como ativo tributável
A precificação de carbono tem se consolidado como uma das principais estratégias para mitigar as emissões de gases de efeito estufa (GEE), seja por meio de instrumentos de mercado, como sistemas de comercio de emissões (ETS), seja pela adoção de impostos sobre carbono (carbon tax).
Em ambos os casos, surge o desafio da qualificação e da tributação dos créditos de carbono: seriam ativos financeiros, bens intangíveis, mercadorias? O marco regulatório e fiscal influencia diretamente a atratividade, integridade e eficiência desses mecanismos [2].
Experiência internacional: Canada, China, OCDE e ONU
A experiência canadense destaca-se pelo modelo “fee and dividend“, em que a arrecadação é devolvida aos cidadãos por meio de créditos fiscais. Embora teoricamente neutro em receita, observa-se que a manutenção dessa neutralidade ao longo do tempo e desafiadora, especialmente diante das mudanças econômicas e políticas [3].
Ainda assim, o modelo é frequentemente citado como referência por sua tentativa de conciliar sinalização econômica com justiça social, ao redistribuir os custos da transição para uma economia de baixo carbono de forma mais equitativa.
Na China, o modelo híbrido combina o comércio de emissões (ETS) com mecanismos de tributação ambiental, refletindo uma abordagem pragmática e gradativa para a precificação do carbono. A promulgação do Environmental Tax Law em 2018, com foco inicial em poluentes locais como dióxido de enxofre e óxidos de nitrogênio, excluiu o CO₂, cuja regulação foi estrategicamente transferida para o ETS nacional, iniciado com o setor de geração elétrica — responsável por cerca de 40% das emissões do país. Essa arquitetura normativa revela um forte compromisso político com a transição climática, ao mesmo tempo em que busca preservar o crescimento econômico e a segurança energética [4].
Ocorre que, apesar dos avanços em relação ao assunto, persistem desafios relevantes relacionados à abrangência setorial, à acurácia na verificação das emissões e à transparência das informações, posto que a ausência de penalidades significativas, a baixa precificação inicial e a limitação de dados auditáveis reduzem a efetividade do sistema, o que demonstra que a robustez regulatória precisa acompanhar a escala do projeto para garantir seu sucesso a longo prazo.
Ainda assim, a experiência chinesa é digna de nota por incorporar instrumentos econômicos distintos de forma coordenada, podendo servir como referência adaptável a outras economias emergentes com realidades institucionais complexas.
No âmbito da OCDE, estudos indicam que menos de 5% das emissões globais são efetivamente tributadas de forma direta, o que evidencia a limitação prática da tributação ambiental como instrumento central de combate às mudanças climáticas. A maioria dos sistemas vigentes apresenta alíquotas baixas, escopo restrito — muitas vezes excluindo setores intensivos em carbono — e significativa falta de harmonização entre os países, o que compromete a eficácia ambiental e a previsibilidade regulatória.
Nesse contexto, a coordenação internacional é frequentemente apontada como elemento essencial para evitar distorções de competitividade e riscos de “fuga de carbono”, isto é, a transferência de atividades poluidoras para países com regulamentações mais brandas. Iniciativas como o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM) da União Europeia [5] surgem como resposta a esse desafio, ao buscar alinhar a política comercial com os objetivos climáticos, promovendo isonomia tributária entre produtores locais e estrangeiros.
Ainda que o CBAM represente um avanço relevante no debate global sobre precificação de carbono, sua adoção unilateral também levanta preocupações sobre possíveis efeitos protecionistas e disputas comerciais. Assim, o exemplo europeu reforça a necessidade de mecanismos multilaterais mais equilibrados, que combinem eficácia ambiental com justiça econômica entre países em diferentes estágios de desenvolvimento.
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem exercido um papel relevante na promoção da padronização conceitual e técnica da tributação do carbono, especialmente nos países em desenvolvimento. A publicação do Handbook on Carbon Taxation for Developing Countries representa um esforço importante de orientação normativa e institucional, oferecendo diretrizes práticas e adaptadas às realidades desses países.
Como bem sintetizado por Grau Ruiz (2023), a implementação bem-sucedida de uma tributação ambiental eficaz exige regulação clara, participação social ativa, compatibilização com outros instrumentos — como sistemas de comércio de emissões (ETS) e incentivos fiscais —, além de uma atenção especial à destinação das receitas arrecadadas, seja por meio de dividendos climáticos, seja por investimentos em infraestrutura sustentável e transição energética [6].
Apesar dos méritos dessa iniciativa, o desafio principal reside na efetividade prática dessas recomendações em contextos marcados por fragilidades institucionais, limitações técnicas e restrições orçamentárias. Em muitos países em desenvolvimento, a ausência de capacidade administrativa e de sistemas confiáveis de monitoramento, reporte e verificação (MRV) dificulta a aplicação das diretrizes propostas, o que pode comprometer tanto a credibilidade ambiental da política quanto sua aceitação social.
Ainda assim, o esforço da ONU é louvável por buscar construir uma base comum e acessível de conhecimento técnico, contribuindo para reduzir a assimetria de capacidades entre países e fortalecendo a governança global do clima. O Handbook configura-se, portanto, como um marco relevante na tentativa de tornar a tributação ambiental uma ferramenta viável e justa no Sul Global.
A análise das experiências internacionais revela que não há uma solução única ou perfeita para a tributação sobre o carbono, pois cada modelo carrega avanços relevantes, especialmente no que se refere à conciliação entre eficiência econômica, justiça social e viabilidade política, mas também enfrenta obstáculos práticos que vão desde a baixa abrangência setorial e dificuldades de verificação até limitações institucionais e riscos de descoordenação internacional.
Nesse contexto, observa-se que o sucesso de qualquer instrumento tributário voltado à precificação do carbono depende diretamente da clareza regulatória, da articulação com outros mecanismos ambientais e da transparência na aplicação dos recursos arrecadados. É justamente à luz dessas lições — e das particularidades estruturais e federativas do Brasil — que se deve analisar o processo de regulamentação da tributação ambiental no país, especialmente em um momento de reforma fiscal e institucional que abre novas janelas para a construção de um sistema mais moderno, eficaz e sustentável.
Regulamentação brasileira e a Lei 15.042/2024
No Brasil, a promulgação da Lei nº 15.042/2024 representa um passo relevante na institucionalização do mercado regulado de carbono, ao criar o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) e estabelecer parâmetros legais para a negociação de créditos de carbono no país.
Um dos avanços mais significativos da norma é o reconhecimento de que, quando transacionados em mercados organizados, os créditos assumem natureza de valores mobiliários, sob a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), sendo que essa definição confere maior segurança jurídica à estrutura de mercado, alinhando-se parcialmente às boas práticas internacionais de governança ambiental.
Do ponto de vista tributário, a lei determina que os eventuais ganhos de capital decorrentes da alienação de créditos sejam tributados pelo IRPJ e pela CSLL, enquanto concede isenção de PIS e Cofins nessas operações. No entanto, permanece omissa quanto à aplicação de tributos subnacionais, como o ICMS e o ISS [7], o que pode gerar conflitos de competência e litígios fiscais, especialmente no âmbito de operações envolvendo entes federados distintos. Além disso, o fato de a Emenda Constitucional nº 132/2023 [8] — que introduziu a reforma tributária — não tratar expressamente da tributação sobre ativos ambientais, como os créditos de carbono, gera um ambiente de incerteza regulatória em relação à sua inserção no novo sistema de CBS e IBS.
Nesse cenário, embora a Lei nº 15.042/2024 represente uma iniciativa importante, sua eficácia plena dependerá da edição de legislação complementar que integre, de maneira coordenada, os créditos de carbono ao novo regime fiscal brasileiro. Essa regulamentação deve assegurar a neutralidade tributária nas operações ambientais, evitar bitributação e promover a integração entre os instrumentos econômicos de política climática, como incentivos fiscais, mecanismos de precificação e obrigações setoriais.
Ressalta-se a ausência de um tratamento normativo claro pode comprometer a atratividade do mercado brasileiro de carbono, afastando investimentos e dificultando a compatibilização com mecanismos internacionais, como o CBAM europeu.
Diante disso, o desafio regulatório que se impõe ao Brasil é construir um arcabouço legal que concilie segurança jurídica, estímulo à descarbonização e alinhamento com os compromissos climáticos assumidos internacionalmente, especialmente em um contexto de transição fiscal profunda e reestruturação do sistema tributário nacional.
Aspectos contábeis e desafios operacionais
De forma breve e sob o ponto de vista contábil, estudos brasileiros [9] indicam que os créditos de carbono devem ser classificados como ativos financeiros destinados a venda, salvo quando adquiridos para uso próprio, caso em que se aplicaria o tratamento de ativo intangível. Referida distinção impacta na contabilização de receitas, na dedutibilidade de despesas e na apuração de tributos.
Adicionalmente, a ausência de normativos específicos no âmbito do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) sobre o tema tem levado as empresas a adotarem, por analogia, princípios gerais dos pronunciamentos contábeis aplicáveis a instrumentos financeiros (CPC 48) [10] ou a ativos intangíveis (CPC 04) [11], o que amplia o grau de discricionariedade e pode gerar inconsistências entre práticas adotadas.
Essa lacuna regulatória não apenas afeta a comparabilidade das demonstrações financeiras, como também reforça a necessidade de harmonização contábil com os critérios fiscais, a fim de mitigar riscos de autuação e assegurar maior transparência na contabilização de instrumentos relacionados à política climática.
Por fim, válido ressaltar a necessidade de estrutura clara de precificação intercompany para transações internas de grupos multinacionais, classificando os modelos de atuação da central de carbono e suas implicações para o transfer pricing, tendo em vista que a falta de diretrizes internacionais padronizadas pode gerar litígios.
O Brasil entre o pioneirismo e a cautela
Como é de se esperar, o Brasil possui um enorme potencial no mercado de carbono, tanto pelo volume de ativos ambientais quanto por sua matriz energética limpa. No entanto, a efetiva inserção desses ativos no sistema tributário requer:
- Regulamentação clara sobre a natureza jurídica dos créditos;
- Integração com o sistema CBS/IBS pós-reforma;
- Compatibilidade com normas contábeis (CPCs);
- Políticas de uso da receita que reforcem a aceitação social;
- Estruturas de governança para transparência, verificação e precificação justa.
A comparação internacional mostra que não há modelo único, porém, há, sim, boas práticas que podem ser adaptadas ao contexto brasileiro, como visto linhas alhures. A oportunidade é inédita, mas exige tecnicalidade, diálogo institucional e visão estratégica de longo prazo.
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Referências bibliográficas
CBC. Tratamento contábil dos créditos de carbono à luz das normas do CPC. XVII Congresso da Contabilidade, 2023.
Grau Ruiz, M.A. Smooth Implementation of Carbon Taxation: An Overview of the Main Proposals in the UN Handbook. Intertax, 2023.
IBFD. Carbon Tax: The Global Perspective. Bulletin for International Taxation, 2023.
KPMG. Carbon Trading and Transfer Pricing: The Next Frontier?, 2023.
Smart, M. Is Revenue Neutrality in Carbon Taxation Possible in Practice? Lessons from the Canadian Experience. Canadian Tax Journal, 2023.
Stamato, A.; Saraiva, T. Como tributar o crédito de carbono? Consultor Jurídico, 21 mar. 2025.
Strachicini, V. A reforma tributária e o mercado de créditos de carbono. Consultor Jurídico, 11 out. 2023.
Xu, Y. Red China’s Green Ambition: Using Taxation and Emissions Trading to Address Pollution. Tax Notes International, 2018.
[1] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2. Ed. São Paulo: Noeses, 2004.
[2] KPMG. Carbon Trading and Transfer Pricing: The Next Frontier?, 2023.
[3] Smart, M. Is Revenue Neutrality in Carbon Taxation Possible in Practice?
[4] Xu, Y. Red China’s Green Ambition: Using Taxation and Emissions Trading to Address Pollution. Tax Notes International, 2018.
[5] IBFD. Carbon Tax: The Global Perspective. Bulletin for International Taxation, 2023.
[6] Grau Ruiz, M.A. Smooth Implementation of Carbon Taxation: An Overview of the Main Proposals in the UN Handbook. Intertax, 2023.
[7] Stamato, A.; Saraiva, T. Como tributar o crédito de carbono? Consultor Jurídico, 21 mar. 2025.
[8] Strachicini, V. A reforma tributária e o mercado de créditos de carbono. Consultor Jurídico, 11 out. 2023.
[9] CBC. Tratamento contábil dos créditos de carbono à luz das normas do CPC. XVII Congresso da Contabilidade, 2023.
[10] https://www.cpc.org.br/CPC/Documentos-Emitidos/Pronunciamentos/Pronunciamento?Id=106
[11] https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/menu/regulados/normascontabeis/cpc/CPC_04_R1_rev_12.pdf
Publicado em Conjur